8 de janeiro de 2013

Hannah Arendt entre arte e filosofia: a banalidade do ato de escrever bem.

Há algum tempo vem crescendo meu interesse na obra de Hannah Arendt. Depois de "A Condição Humana" e "Sobre a Revolução", duas geniais obras que já marcaram posição como clássicos da teoria política (a própria Arendt preferia esse termo ao invés de "filosofia política"), estou lendo "Entre o Passado e o Futuro", outra contribuição inestimável dessa brilhante judia alemã perseguida pelo nazismo, regime que depois lhe serviu de análise e reflexão para construção de suas principais teses sobre liberdade e autoritarismo.

Conhecida pela intransigente defesa do pluralismo na esfera pública como condição da autonomia dos indivíduos, que livremente se reconhecem e assim constituem a política, Hannah Arendt pode ser considerada como exemplo de pensadora sagaz, capaz de articular as dimensões fáticas e valorativas próprias da política de modo particularmente interessante ao resgatar criticamente categorias do pensamento clássico como "vita activa" e "vita contemplativa", para problematizá-las com a universalidade da moral no pensamento kantiano e o significado do trabalho e da cultura capitalista do mundo moderno, segundo a vertente posta por Marx.

E para mim o mais impressionante: conseguir fazê-lo de uma forma magistral do ponto de vista da escrita (uma verdadeira banalização do ato de escrever bem!). A aliança entre clareza e consistência nos textos de Arendt são convidativos ao aprofundamento dos temas mais sensíveis da filosofia política. Desde as condições do pensamento na modernidade até a crise da cultura, do ensino e das estruturas institucionais da organização política. A forma como é trabalhada a "transição" entre a tradição e a modernidade em "Entre o Passado e o Futuro" é de um tom esclarecedor tal que parece converter um tema tão complexo de filosofia da história em um relato instigante sobre os (des)caminhos do pensamento ocidental e seus reflexos na vida social.

Não bastasse a tenacidade de suas reflexões e o vigor do seu legado para o resgate da dignidade da política como autêntico meio de legitimação das escolhas sociais, colaborando para uma das mais relevantes críticas ao autoritarismo baseado numa burocracia pouco compreensiva de seu papel ou vazia de reflexividade acerca da consequência de seus atos para a vida dos indivíduos (a famosa "banalidade do mal"), de que se serviram os regimes totalitários, Hannah Arendt possui uma biografia belíssima, uma história de vida realmente fascinante e que agora está no cinema. O filme ainda não está disponível no Brasil, mas o trailler (abaixo) já dá uma pequena mostra de que vale muito a pena procurá-lo assim que possível.


Essa pode ser uma bela demonstração de que a junção de arte e filosofia no cinema é uma experiência muito enriquecedora e capaz de viabilizar, na forma de lazer, a difusão de um pensamento tão importante na história intelectual do século XX, como é o de Hannah Arendt.

A seguir, a sequência de quatro vídeos do documentário "Hannah Arendt - Pensar Apaixonadamente" (em francês, com legendas em espanhol) que contam a história dela, com vários trechos de entrevistas concedidas, assim como alguns detalhes de sua amizade com o filósofo Karl Jaspers, o caso amoroso com Heidegger, a perseguição e o exílio na França e depois nos Estados Unidos, além de outras passagens da vida dessa extraordinária representante da teoria política contemporânea.






19 de novembro de 2012

Além de salsa, piña colada e charutos (1)



Viajar para Cuba e conhecer um pouco mais daquele país durante as férias pode significar mais do que descanso e lazer. Belezas naturais, a rica cultura e a história do povo cubano, além das idiossincrasias da única nação das américas, e uma das últimas do mundo, a afirmar-se como socialista e manter um regime centralizado de controle econômico na figura do Estado é uma experiência um tanto curiosa.

É claro que uma visita de turista por 7 dias, sendo 4 deles em Varadero, além do contato limitado pelo pouco tempo com moradores, quase todos ligados ao turismo, somado ao fato de não ter ido a supermercados, escolas, universidades e hospitais (estes têm acesso restrito e precisam de autorização oficial) é capaz de fornecer apenas uma visão parcial e bem limitada da condição de vida das pessoas e do regime político-econômico da ilha, se é que isso seja possível como estrangeiro de passagem. Afinal, estávamos de férias e não fazendo pesquisa sociológica de campo, porém, alguns fatos merecem registro.

Após quase quinze horas entre Brasília e nosso primeiro destino (Varadero) chegamos exaustos. Desembarcamos em Havana, com tempo nublado, pista molhada e a primeira impressão foi a de que o aeroporto não tinha a "cara" da cidade, como raríssimos devem ter. Controle de imigração tranquilo, pouca gente, sem filas e uma simpática atendente. 

Trocamos alguns euros por pesos cubanos conversíveis - CUC (há ainda pesos cubanos comuns que valem cerca de vinte e cinco vezes menos). O CUC vale quase um dólar (0,97), mas se você troca dólares paga um deságil de 10%, o que não ocorre com outras moedas como o euro. Esqueça cartões de crédito, ele só é aceito em alguns grandes hotéis. Depois disso, pegamos um sanduíche de presunto e queijo, por sinal bem gostoso, e seguimos para o ônibus que nos levou a Varadero.

Um guia falou sobre várias coisas interessantes da ilha no caminho, clima, moeda, produtos que fizeram fama local, como o rum, café e os charutos, mas até então nada sobre política. Notei que um casal que estava sentado atrás no ônibus perguntou sobre o governo e a situação econômica, migração, etc. relacionando tudo ao bloqueio econômico norte-americano. O guia desconversou, disse que não se interessava muito sobre esses assuntos, mas disse que a grande maioria da população aprovava o governo e que os protestos eram isolados...sem muita convicção, entretanto.

Paramos em uma lanchonete à beira da estrada no meio do caminho entre Havana e Varadero, que tem uns 150km e uma estrada bem conservada. Tomei uma piña colada (mistura de abacaxi, rum e côco) que estava excelente, e depois um café pra despertar. A lanchonete também vendia souvenirs, então comprei chaveiros e um livrinho sobre a Constituição cubana de 1976 por uns 5 pesos que nas palavras de Raúl Castro no texto: é o documento mais importante da institucionalização da Revolução. Li pouco em razão do cansaço.

No caminho, chamou a minha atenção o fato de vários muros das casas, todas muito simples, ressaltarem a pátria. Parece existir um patriotismo forte em torno dos ideais da Revolução e escritos como "linda terra, sempre te defenderemos" são bem simbólicos do amor que os cubanos parecem nutrir pela ilha. Passamos por algumas pequenas vilas, fazendas (muitas com plantação de cana-de-açúcar) e pela cidade de Matanzas, capital da província de mesmo nome, que é uma apologia às mortes no local desde a chegada dos espanhóis. Importante área industrial da ilha, com prédios maiores e um comércio local.

Chegamos ao hotel, almoçamos, conhecemos as instalações, totalmente incompatíveis com o contexto do restante da ilha, que até entao só vi pelo caminho como uma série de casas pequenas e muito humildes, alguns prédios muito velhos e sem conservação e algumas praças e colégios públicos relativamente bem mantidos e limpos.

Depois de um banho liguei a tv e sintonizei um dos canais estatais (há 2 no país), estava passando um programa educativo de debate, acho que sobre literatura e ensino infantil. Em seguida, alguns comerciais que estimulavam a solidariedade entre os cubanos, especialmente em relação às mulheres e idosos, vi dois desses. Depois começou o jornal, com notícias sobre os destrutivos efeitos do furacão Sandy na costa atlântica da ilha. Após, uma homenagem ao aniversário da Revolução russa de 1917, por conta do 07 de novembro, exaltada como o grande marco histórico do potencial das liberdades contra a opressão...Achei forçação ideologizante, a forma de abordagem era de uma ingenuidade tão grande que só poderia ter sido feita com o desprezo de muitos registros históricos importantes. Na matéria,  entrevistaram o representante da embaixada da Bielorrússia em Cuba, com ares saudosistas do regime soviético.

Depois falaram sobre o conflito na Síria como tentativa de controle imperialista do Oriente Médio pelo Ocidente, criticando duramente a posição da Inglaterra. Falaram também sobre as eleições norte-americanas, mas não noticiaram a vitória de Obama que ocorrera justamente naquele dia. Provavelmente a gravação foi feita antes de se saber o resultado e não havia nada "ao vivo" no programa. Na verdade, eles não deram muito destaque a isso no noticiário, como fazemos no Brasil em que há cobertura especializada, debates e etc. e tal.

Fui cochilar e só acordei no dia seguinte: café, praia, mais descanso, piña colada, comida, essa foi nossa "rotina" de férias em Varadero, que poderia ser em Porto de Galinhas, Pipa ou outra praia do Nordeste. O mar era bonito, mas não tanto quanto às praias que ficam na costa do Caribe. Acho que Varadero está para Cuba como Cancún está para o México: um lugar de grandes hotéis em que os locais não entram, salvo para trabalhar.

Varadero é uma das grandes contradições do país. É uma ilha dentro da ilha, voltada ao circuito do turismo de luxo, tipicamente capitalista, repleto de resorts que trabalham com o sistema all inclusive, um claro estímulo ao consumismo sem limites. Não foi à toa que ouvi de alguém que Varadero não era para cubanos, informação que confirmei depois em um museu de Havana, quando soube que os ilhéus são proibidos de ir à Varadero (entram apenas com autorização oficial, o que significa proibir o livre trânsito). Eis aqui uma violação frontal ao direito de locomoção inscrito na declaração universal dos direitos humanos, o que se torna mais grave já que se trata do próprio território nacional.

Perguntei sobre isso a um cubano que trabalhava na academia hotel como instrutor e ele confirmou. Acorda todos os dias às 4:00 da manhã, pega um ônibus do hotel que leva todos os que lá trabalham e fica até aproximadamente 5:00 da tarde. Está lá há 12 anos. Vi o cara, que deve ter entre 36 a 40 anos, se exercitando com a elasticidade de um adolescente, e perguntei: ginástica olímpica? E ele respondeu afirmativamente, o cara, filho de um chinês com uma cubana, tinha sido da equipe olímpica de Cuba (fiquei de 'cara', lógico), e logo em seguida ele disse que também era instrutor de yoga, tai chi e conhecia algumas daquelas artes marciais que faz você ter habilidade de subir paredes.

No dia seguinte encontramos com Yasser, um guia turístico cubano que nos levou a Santa Marta (praia caribenha na província de Matanzas) para mergulhar. Atração à parte foi o Ford 1957 em que fizemos o trajeto. Muitíssimo bem conservado, barulhento é verdade, mas confortável e espaçoso. O motorista, que adorava buzinar por qualquer coisa, conduziu a uma velocidade entre 80 e 100 km/h e levamos cerca de 2:30h, com uma parada.

No trajeto há muitas plantações de laranja, limão, café e cana-de-açúcar. Passamos pela cidade de Cárdenas, local onde Yasser vive com sua família. Cavalos e carroças espalhados pelas vias são comuns, chegamos a presenciar, no caminho de volta, um inusitado engarrafamento de carroças. A cidade tem "cara" daqueles lugarejos do interior nordestino em que senhorinhas colocam cadeiras nas calçadas pra bater papo e olhar o movimento.

Chegando ao destino, admiramos a paisagem (a praia é realmente paradisíaca), mergulhamos por cerca de uma hora, tomamos uma Cristal (uma das duas cervejas locais) e conhecemos um lago lindíssimo, um espelho d'água, com alguns peixes pequenos que disputam cada migalha de pão lançada à superfície. Segundo Yasser, há uma bomba, deixada desde a época da Revolução, no fundo do lago (20m), que dorme sob os sedimentos, mas que poderia explodir a qualquer hora, lenda um tanto bizarra.

Voltamos em direção a Varadero dispostos a parar em algum lugar pra almoçar. Foi quando aproveitei para amolar os meus amigos cubanos com perguntas. Perguntei sobre saúde, educação, economia, o embargo, o governo, o que eles achavam da Revolução, sobre vontade de sair do país diante da relativa abertura que Raúl Castro está implementando...essas coisas de turista curioso chato.

Yasser respondeu a todas as minhas perguntas. Disse que os melhores anos da Revolução foram os oitenta, quando a URSS comprava muito açúcar, níquel e outros produtos cubanos e chegava muito dinheiro. A saúde e a educação constituem, de fato, sistemas únicos com atendimento universal: nas mesmas escolas e hospitais são atendidos todos, desde os filhos de camponeses aos do mais alto membro do partido comunista o que põe todos em um ponto de partida equivalente (não falo das oportunidades de emprego e salário, que, de fato, são muito limitadas em razão do embargo). Porém, mesmo a saúde e educação, referências premiadas da ilha, perderam qualidade após a queda do bloco socialista europeu.

Sobre a economia eles confirmaram minhas impressões. O isolamento é dramático. Enquanto passávamos por uma indústria de suco de laranja e muitas plantações, próximo a Cárdenas, ele falava das dificuldades provocadas pela escassez de oportunidades de comércio. O país tem a maior reserva de níquel do mundo, além de muitos outros produtos além de charutos e rum, mas o bloqueio econômico, que já dura mais de 50 anos e sofreu nova reprovação da Assembleia Geral da ONU, em reunião ocorrida no período que estávamos lá, confina ainda mais a ilha.

Restrições de comunicação também são evidentes. Yasser disse que paga cerca de U$3 para ter acesso a uma hora de internet em casa, que é muito lenta, prejudicando a sua atividade. Como ele faz fotografias subaquáticas de turistas mergulhando, sofre para baixá-las e enviá-las depois (recebemos apenas três de umas 20 que ele tirou). Mesmo com todas as dificuldades, eles não faziam ares de lamentação ou de revolta. Quando perguntei sobre o interesse em deixar a ilha nenhum dos dois manifestou-se com avidez. O motorista, que usava boné nike e óculos ray ban, tem mãe e irmã que moram em Miami, e pareceu ter o desejo de sair.

Após um almoço excelente no quintal de um cubano chamado Chuchi, que é pescador e mantém um restaurante em sua casa, onde é possível comer um prato com lagosta, camarões e partes do "cangrejo" gigante como o da foto, acompanhados de um arroz típico cubano (uma espécie de baião de dois com feijão preto) e salada (com alface, tomate pepino e abacate) por 12 pesos cubanos, o que achei muito bom, considerando que em qualquer lugar em Brasília o equivalente sairia por uma pequena fortuna de 100 a 150 mangos ou mais, sei lá. 

Voltamos à rotina do turismo capitalista "fantasia" do hotel, para mais dois dias de comilança geral, mojitos, piñas coladas, chopps, muito sol e espetáculos de dança "pra turista ver" no teatrinho noturno. Canadenses e holandeses foram as figuras mais frequentes no local, mas conhecemos algumas brasileiras que estavam de passagem para um congresso de nutrição. A essa altura eu já estava ansioso pra conhecer Havana, mas essa é uma historinha pra outro post.

11 de outubro de 2012

A espada de Dâmocles entre o STF e a imprensa.

Amplamente noticiada pela televisão, jornais, sites, blogs, assim como exaustivamente curtida,  compartilhada e twitada nas redes sociais, a condenação de José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares e demais denunciados do núcleo político do “mensalão” pelo Supremo Tribunal Federal, pode ser um bom termômetro para medir o clima que envolve a deliberação de um tema com significativa repercussão política na Corte e também para aferir o estado febril de alguns veículos da imprensa nacional.

Não é o caso aqui de discutir a justiça da decisão. Essa é uma dimensão que escapa aos espectadores do julgamento, e acredito que também aos próprios julgadores ao se depararem diante de um caso tão intrincado quanto avassalador de corrupção que atinge a regularidade do processo legislativo e a liturgia esperada dos que ocupam um mandato parlamentar e cargos do primeiro escalão do governo.

Também não é o objetivo aqui questionar a validade da interpretação da chamada “teoria do domínio do fato”, difundida no Brasil por obra do penalista argentino Eugenio Raul Zaffaroni, que foi utilizada pelo ministro Celso de Mello para fundamentar a condenação de Dirceu, sob o protesto dos ministros Lewandowski e Dias Toffoli.

Nestas breves linhas, tampouco é o caso de pôr em debate a adequação do veredicto. Desconhecendo a prova dos autos, mas confiando nos ministros e na instituição, o momento é de reconhecer a legitimidade da condenação e deixar o Tribunal cumprir sua tarefa de dosar as penas e terminar o julgamento, o que não impossibilita aos condenados a busca de sua reforma na própria Corte ou fora dela, acaso encontrem na violação de tratado ou convenção internacional o motivo para a absolvição.

Trata-se, entretanto, de alertar para a necessidade de entender que significado a condenação de líderes políticos e representantes do mais alto degrau do partido do governo (anterior e atual) pode adquirir na autocompreensão do STF em seu papel de garante das liberdades republicanas fundamentais. E mais, de que maneira a mídia desempenha a função de informar sobre o julgamento numa sociedade que se pretende democrática, digna de igual respeito e consideração em direitos e obrigações.

A se levar em conta o histórico(1) das condenações de parlamentares na nossa Suprema Corte, retrospecto em parte responsável pela descrença na capacidade do sistema jurídico de colocar políticos atrás das grades, o julgamento do “mensalão” pode projetar-se como paradigma. Não se sabe, porém, se para o bem ou mal do Estado Democrático de Direito.

A delicadeza da situação põe Têmis, a deusa da justiça e das leis humanas na mitologia grega, sob a espada de Dâmocles(2). Se tivermos um resultado sem lastro nas provas reunidas nos autos ou com inobservância à ampla defesa, fragilizada estará a garantia do devido processo e com ele o Estado de Direito; por outro lado, se do resultado sufragado pelo Supremo derivar a descrença generalizada na força do direito como meio de realização das expectativas de justiça, abalado estará o Estado Democrático.

Registre-se que a condenação ora realizada pode simbolizar para o imaginário coletivo a consolidação da independência do Judiciário em relação à política partidária. O Tribunal agora seria capaz de afirmar a autonomia do direito frente à cúpula do poder. Um marco institucional para a atuação de uma Corte que já foi solenemente desautorizada pelo chefe do Executivo durante o Estado Novo(3), e sofreu duro golpe durante o regime militar(4), quando foram cassados três dos seus mais brilhantes ministros .

Essa parece uma versão atraente para uma composição em que boa parte dos ministros tem se notabilizado pela discussão de causas de grande repercussão social, a exemplo da viabilidade de pesquisas científicas com células tronco embrionárias; a interrupção da gravidez de feto anencefálico; a união civil homoafetiva e a constitucionalidade do regime de cotas para ingresso no ensino superior, todas acompanhadas com grande interesse pelo público através da TV Justiça.

A forma de condução do julgamento do “mensalão”, os conflitos entre relator e revisor, os debates, a leitura de cada voto pode revelar muito mais do que posições jurídicas convertidas na condenação ou absolvição dos réus.

Talvez seja o caso de observar em que medida o Supremo Tribunal Federal deixa-se ver pelas lentes da cobertura televisiva e matérias publicadas quase que instantaneamente à ocorrência dos fatos. Qual papel esse olhar da mídia e para a mídia tem na autocompreensão da Corte como instituição: a de uma instância predominantemente política, comprometida com a realização de valores virtuosos e agindo em nome da legitimação de uma democracia em que representados se vêem na atuação de representantes; ou como um foro independente dos anseios populares e midiáticos, cuja obrigação é fazer prevalecer o direito dos réus ao julgamento justo e consonante com as provas dos autos.

De uma avaliação que tenha de lidar com características tão complexas e entrelaçadas das esferas do direito e da política, quanto são as envolvidas num julgamento como o do “mensalão”, não se pode esperar a pureza de opção por um lado ou outro. No entanto, observar as sutilezas que cercam os votos de cada ministro e a seletividade informativa presente em cada matéria sobre as sessões pode significar mais do que a histórica condenação de políticos. Num país onde a impunidade estimula a corrupção, pode, especialmente, ajudar-nos a compreender melhor o funcionamento do Judiciário e da imprensa, fator indispensável para nos posicionar sobre o que demandar de ambos na construção da democracia



1. Desde a redemocratização, o STF condenou apenas seis parlamentares. O primeiro deles foi o Dep. José Gerardo Oliveira de Arruda Filho (PMDB/CE), na Ação Penal n° 409, relatada pelo ministro Ayres Britto e julgada em 13.05.2010, pela malversação de recursos de convênios quando o acusado era prefeito do Município de Caucaia/CE. A pena de 2 anos e 2 meses de reclusão foi substituída por duas restritivas de direitos. Em seguida foram condenados os deputados Cássio Taniguchi (DEM/PR); José Tatico (PTB/GO); Natan Donandon (PMDB/RO); Asdrúbal Bentes (PMDB/PA) e Abelardo Camarinha (PSB/SP). 

2. O mito conta o episódio em que Dionísio, Rei de Siracusa, cansado de ouvir os excessivos louvores e da inveja de Dâmocles, propôs que trocassem de lugar por um dia. Levado pelos serviçais ao palácio e em meio aos banquetes, Dâmocles de repente enrijeceu-se e ficou pálido, percebeu que sobre a sua cabeça havia uma espada, presa ao teto por apenas um fio de cabelo, cuja lâmina apontava para seus olhos. Então, desesperado, reconheceu que Diosnísio não tinha apenas mordomias de Rei, mas riscos gigantescos, deixando de importuná-lo a partir de então.

3. O art. 96 da Constituição outorgada em 10 de novembro de 1937 previa a hipótese de suspensão dos efeitos de decisões do STF que contrariassem o “bem-estar do povo ou a promoção do interesse nacional de alta monta”, por deliberação de dois terços do Congresso. Com o parlamento fechado pelo autoritarismo do Estado Novo, o próprio Getúlio Vargas, através do Decreto-lei n° 1.564, de 05.09.1939,  suspendeu decisão do STF que declarava inconstitucional a sujeição de vencimentos pagos pelos cofres estaduais e municipais ao imposto de renda. 

4. Com um decreto editado com base no AI-5, em 16 de janeiro de 1969 foram aposentados compulsoriamente pelo governo de Arthur da Costa e Silva os ministros: Hermes Lima, Victor Nunes Leal e Evandro Lins e Silva. Em protesto, renunciou o então Presidente do Tribunal, Gonçalves de Oliveira e pediu aposentadoria o ministro mais antigo da Corte Lafayete de Andrada.

       

6 de outubro de 2012

A Constituição dos tubarões.


Por ocasião da passagem do vigésimo quarto aniversário da nossa Constituição, vale a pena ouvir a mensagem acima e refletir sobre o papel do constitucionalismo no mundo e no Brasil. Trata-se de um poema antológico de Bertold Brecht, aqui na voz de Antonio Abujamra, chamado "Se os tubarões fossem homens".

A analogia metafórica entre a vida marinha e a sociedade humana é de uma sutileza crítica muito sagaz, descreve pontos de contato entre nossa cultura e a inigualável força dos tubarões como soberanos aquáticos, levantando questões sobre as diversas formas de subjetivação pelas "redes" cuidadosamente tecidas pelas estruturas mais difundidas das relações sociais.

Um texto brilhante, que toca o sentido da necessidade permanente de questionamento das razões da obediência e se coloca entre a legitimidade da ordem e a autoridade de quem manda, paradoxo inescapável da fundação do constitucionalismo e da organização das nossas instituições.

Vale a pena ler, assistir e refletir sobre a mensagem de Brecht.

    

28 de setembro de 2012

Discussão sobre ações afirmativas no ensino superior

Excelente exposição de Michael Sandel, em seu famoso e difundido curso "Justiça - o que é fazer a coisa certa?", que está quase integralmente no Youtube.
Aqui Sandel discute o liberalismo de Rawls e o argumentos de libertários e utilitaristas sobre a política de cotas para negros no ensino superior dos EUA. Vale a pena assisti-lo.

http://www.youtube.com/watch?v=ATHvbqse8Fs&feature=youtube_gdata_player

27 de setembro de 2012

Amartya Sen e a Ideia de Justiça

Caros(as),
  acaba de ser publicado o último volume da Revista Brasileira de Ciência Política (Ipol/UnB), uma resenha, escrita em conjunto com o Prof. Alexandre Araújo, sobre o último livro de Amartya Sen, "A Ideia de Justiça", Companhia das Letras, 2011.

Ressaltando e, ao mesmo tempo, opondo-se à análise de Rawls sobre a justiça, Amartya Sen contrapõe-se à vertente idealista hegemônica do pensamento político sobre a teoria da justiça, focada na formulação racional de arranjos organizacionais, que se posiciona Amartya Sen ao falar sobre o “institucionalismo transcendental” (SEN, 2011, p. 56), destacando o risco de reduzir as avaliações sobre a justiça em retórica vazia ao abordar o problema sob o estrito enfoque da perfeição das instituições, dificultando, por sua vez, a remoção de injustiças em situações concretas.


Opondo utilitaristas a institucionalistas, a partir do conceito de racionalidade limitada, Sen procura resgatar análises comparativas sobre o justo em relação a particularidades dos casos, o que não teria recebido o devido cuidado na formulação rawlsiana sobre a justiça como equidade, e, pontua a “dependência mútua” (SEN, 2011, p. 142) entre abordagens transcendentais e comparativas como meio de escapar do paroquialismo cego de sua limitação posicional.  

Trata-se de um livro interessante, e que já ganhou lugar de destaque nos atuais debates sobre as formulações contemporâneas do justo no contexto global marcado por desigualdades sociais e regionais, cujas abordagens institucionalistas, muito influenciadas por autores como Rawls e Mangabeira Unger, tem encontrado muitas resistências diante dos inúmeros conflitos humanitários.       

21 de setembro de 2012

Efeito Vinculante e Concentração da Jurisdição Constitucional no Brasil

Poucas atividades podem demandar tanto trabalho e, paradoxalmente, serem tão prazerosas quanto escrever, quando se tem paixão pelo que se faz. Pesquisa para mim é isso: dedicação e paixão pelo tema!

Acho que essa indispensável relação de paixão pelo tema é capaz de exercer um fascínio tão entorpecedor quanto racionalizante. Esse fascínio torna impossível, enxergar até onde vai quem escreve e até onde o tema, os relatos, os dados coletados e as informações disponibilizadas, exercem sua própria expressão, com sua invasiva força avassaladora sobre as impressões de quem as analisa.

É com esse espírito que eu tenho a satisfação de publicar Efeito Vinculante e Concentração da Jurisdição Constitucional no Brasil, minha dissertação de mestrado defendida na Faculdade Direito do Recife/UFPE, trabalho que marcou um período muito fértil de aprendizado e amadurecimento pessoal.

O livro oferece algumas reflexões sobre o fenômeno da concentração da jurisdição constitucional brasileira, desde uma investigação sobre o seu conceito, numa perspectiva procedimentalista do regime democrático; passando pela concepção dos modelos tradicionais de controle de constitucionalidade, assim como por um resgate histórico-político da vinculação das decisões, na prática institucionalizada no Brasil, comparando-a especialmente com a norte-americana, mas também com a de outros países (Itália, Alemanha e Espanha). Ao final, são apresentados pontos positivos e negativos em torno da ampliação do efeito vinculante aos fundamentos determinantes utilizados pelo Supremo Tribunal Federal em suas manifestações, avaliando a questão inclusive do ponto de vista das técnicas de decisão já adotadas pela jurisprudência do próprio STF.

Motivo de especial alegria é também poder contar com o prefácio do amigo e mestre, Prof. Ivo Dantas (Direito/UFPE), que presidiu a banca examinadora do trabalho, a quem só tenho palavras de gratidão pelo apoio durante a pesquisa, e a apresentação do também amigo, mestre e constante interlocutor, Prof. Alexandre Araújo Costa (Ciência Política/UnB), coordenador do nosso Grupo de Pesquisa em Política e Direito.

A revisão e edição ficaram a cargo da Editora Consulex, que já conta com trinta e seis anos no mercado editoral brasileiro e cuja qualidade do trabalho há muito é reconhecida, especialmente em relação às publicações jurídicas. À Consulex, em nome do Prof. Celso Bubeneck (diretor de redação), eu também agradeço.

Agora é disponibilizá-lo aos leitores!